Professores criam Igreja da Verdade Real
Dica: Âmbito Jurídico
Uma comunidade criada no Facebook na semana passada está gerando grande alvoroço: a Igreja da Verdade Real. Com menos de uma semana de atividade, a comunidade já conta com mais de 2 mil “fiéis”.
Os autores da comunidade optaram pelo tom irônico, como pode ser percebido através de “pregações” como: “Não censuramos fetiche pela legislação infraconstitucional e louvamos a ambição de verdade inquisitorial. Amém!”. A “Igreja” “prega” que no processo penal a verdade é integralmente atingida pelo juiz, que deve buscá-la a qualquer custo, mesmo que para isso o acusado deva ser tratado como objeto desprovido de quaisquer direitos. A “Igreja” também crê no Legislador, no Homem Médio, na Mulher Honesta e na completude do Ordenamento Jurídico, assim como no Papai Noel e em duendes e espera pelo coelhinho da páscoa.
Os responsáveis pela iniciativa são os professores Alexandre Morais da Rosa (UFSC e UNIVALI), Salah H. Khaled Jr. (FURG) e Neemias Prudente (EMAP), que a criaram com a intenção de críticar de forma sarcástica um conjunto de dogmas do discurso jurídico-penal contemporâneo, tendo como objeto de especial desdém a verdade real. Para os professores, a ideia de que o processo penal deve ter como meta a busca da verdade acaba por conformar a continuidade do inquisitorialismo nas práticas punitivas, uma vez que um processo assim configurado permite o tratamento do acusado como inimigo que deve ser condenado a qualquer custo. Essa ambição de verdade simplesmente mata o in dubio pro reo (fazendo dele um legítimo in dubio pro hell) uma vez que permite que o juiz pratique ato típico de parte, interferindo na gestão da prova e atuando como inquisidor no processo em caso de “dúvida”, que deveria determinar a absolvição do acusado de acordo com o referido princípio.
A comunidade objetiva discutir ideias e seus autores são veementes ao afirmar que críticas pessoais não são toleradas, pois discordam de ideias e não de pessoas. Por outro lado, embora as críticas sejam bem-humoradas, são bastante incisivas e empregam grande número de recursos, como os consagrados memes e citações de obras paradigmáticas do pensamento inquisitório, como o Manual dos Inquisidores de Eymerich e o Martelo das Bruxas de Kramer, tidos como “sagrados”. Os próprios autores compartilham trechos de suas obras e de outros estudiosos do tema e as taxam de “hereges” conclamando os “fiéis” a incinerá-las. Para eles, a expressão “verdade real” sequer faz sentido, conformando um uma construção absolutamente ingênua desde uma perspectiva filosófica e epistemológica, mas que na concretude das coisas se presta a inúmeras violências contra os direitos fundamentais dos acusados.
A conexão entre o pensamento jurídico sedimentado e a Inquisição é explorada através da alusão ao sagrado, mas os autores esclarecem que não há intenção de crítica a qualquer religião organizada. A ironia é inteiramente destinada à canonização de categorias autoritárias do pensamento jurídico-penal, que são repudiadas pelos professores, que defendem acima de tudo o devido processo legal e o estabelecimento de um dique de contenção à torrente do poder punitivo. Em outras palavras, de forma bem-humorada e inusitada, os professores abriram outra frente de combate ao autoritarismo processual penal, lutando pelas regras do jogo processual penal e tendo como horizonte de ação a redução de danos.
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